Relatório mostra como companhias ditam regras e leis que as beneficiam e invertem a lógica de priorização da esfera pública.
Regina Santos/ Norte Energia (14/05/2013)
Construção de Belo Monte deixa claro interesses do capital privado acima dos da população local |
Diferentemente
do esperado, as políticas públicas não são elaboradas pelo Estado em prol da
sociedade civil, mas por grandes empresas que exercem um poderio cada vez maior
sobre os Três Poderes. Em um estágio extremo do capitalismo, grandes empresas
protagonizam um mecanismo de “captura da esfera pública” e passam a ditar leis
e regras. O Estado inverte, então, a lógica, e prioriza interesses privados em
vez de públicos.
É
contra essa dinâmica que o grupo de ativistas e pesquisadores Vigência! lançou
recentemente o relatório A
privatização da democracia: Um catálogo da captura corporativa no Brasil. O documento de 144 páginas,
elaborado em conjunto com o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e
Pesquisas) com apoio da ONG britânica Oxfam, esmiúça a entrada agressiva
do capital privado em áreas como alimentos e biossegurança, educação, finanças
e juros, meio ambiente, mídia, saúde, segurança e habitação, e fornece uma
radiografia da atuação das grandes empresas nesses setores.
“Mostramos
um processo de privatização da democracia, no qual grandes
grupos econômicos, e seus interesses privados, se apropriam e
controlam a esfera de decisões a partir de seus interesses”, explica a geógrafa
Yamila Goldfarb, que na publicação escreve sobre alimentos transgênicos.
O
modus operandi se dá através de práticas
como o lobby – não
reconhecido ou regulado no Brasil – e o que se chama de “porta giratória”, ou
seja, a contratação de ex-gestores públicos pela iniciativa privada ou vice-versa.
No
Brasil a prática não é crime e são poucos os cargos públicos que exigem do novo
ocupante uma quarentena de quatro meses após a demissão. Assim, o mecanismo é
amplamente utilizado, por exemplo, pela indústria farmacêutica. “O
ex-presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, demitido do órgão em outubro de 2014,
por exemplo, foi contratado pela Interfarma em maio de 2015”, lembra o
relatório.
Logo
na introdução, o economista Ladislau Dowbor explica que a ideia é, por meio de
estudos de caso em diferentes setores, “fornecer um panorama da influência que
as empresas exercem sobre os processos políticos no Brasil de forma a favorecer
seus interesses privados”. Constata-se, então, “um ciclo perverso, que despreza
os interesses de diversas parcelas da sociedade brasileira – sobretudo os dos trabalhadores e
trabalhadoras do campo e da cidade.”
Esse sistema acaba por custar caro a todos. Enquanto os pequenos produtores
agrícolas podem ficar reféns dos “contratos de serviço” com grandes
processadoras de alimentos ou com empresas de agrotóxicos ou sementes
transgênicas vendidas por transnacionais, no mercado imobiliário leva a uma
desenfreada especulação e na educação pode priorizar o lucro em detrimento da
qualidade do ensino.
Na
esfera ambiental, atinge diretamente povos originários e altera formas de vida,
como constatou-se no processo de construção de barragens e obras da usina de
Belo Monte, no Pará.
As
consequências também são perceptíveis quando se analisa a concentração de renda
e a consequente desigualdade trazidas por essa dinâmica. Dados
levantados pela Oxfam mostram
que em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de
pessoas, e que a riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 45%,
saltando de 542 bilhões de dólares em 2010 para 1,76 trilhão em 2015.
O
rendimento anual médio dos 10% mais pobres da população mundial, por outro
lado, aumentou menos de 3 dólares em quase um quarto de século, sendo que sua
renda diária aumentou menos de um centavo por ano. Neste contexto, a América
Latina se mostra especialmente preocupante, uma vez que tem 0,5% de sua
população economicamente ativa dona de 43% da riqueza da região, enquanto e os
8% mais ricos possuem 87% dela.
Dentre
os inúmeros exemplos do poder que as empresas exercem no Brasil, um dos mais
expressivos talvez seja quando se analisa a política fiscal. O relatório
observa que, apesar de o Brasil ser um dos únicos países do mundo a não taxar
lucros e dividendos de empresas no imposto de renda de pessoa física (o que lhe
renderia uma receita de 43 bilhões de reais por ano), “a elite econômica ameaça
retirar o apoio ao governo a cada tentativa de ajustar a política
fiscal no sentido de
repartir a conta com o setor mais rico, e afirma que a única solução para
equilibrar as contas da nação é cortar gastos sociais.”
Tais
desonerações fiscais concedidas pelo governo brasileiro a diversos setores
custaram ao País 260 bilhões de reais, sendo 68 bilhões de reais apenas entre
2011 e 2014.
Evidências
“O
poder das empresas não é uma novidade, mas o relatório identifica exemplos
concretos dos mecanismos dos quais elas se utilizam para influenciar o
Executivo, o Legislativo e o Judiciário no país”, observa o cientista político
Gonzalo Berrón, um dos organizadores da publicação. Para Berrón, enquanto o
Legislativo e o Executivo são os mais influenciados pelo grande capital,
através de regras e projetos de lei, o Judiciário incorpora tal influência na
esfera cultural.
Além
de denunciar os abusos, A
privatização da democracia: Um catálogo da captura corporativa no Brasil aponta algumas “rotas de fuga” que
podem ajudar no desmantelamento de uma cultura corporativa que alimenta desigualdades
e ofusca o protagonismo das necessidades da sociedade civil perante o Estado.
São
elas: uma ampla reforma política; o aperfeiçoamento das leis anticorrupção;
proibição efetiva ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais e de
partidos; fixação de limites baixos para as contribuições pessoais para os
partidos e as campanhas; promoção do financiamento público dos partidos e das
campanhas.
“O
que propomos tem um aspecto anticapitalista, mas não significa que para mudar
tenhamos de sair do sistema capitalista Acreditamos na possibilidade de
melhorar o quadro, regular, impor limites”, afirma Yamila.
Para
isso, ela observa, é preciso ampliar o controle público da economia, a
participação social na implementação de políticas públicas, uma maior
transparência que promova uma participação efetiva da sociedade. “Sabemos que
as empresas são uma parte da sociedade que merece ser ouvida, mas assim como os
movimentos sociais deveriam ser. O problema-chave é a assimetria que existe
para esses atores na hora de influenciar e elaborar políticas.”