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Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência.” *Kal Marx “os comunistas nunca devem perder de vista a unidade da organização sindical. (Isto porque) a única fonte de força dos escravos assalariados de nossa civilização, oprimidos, subjugados e abatidos pelo trabalho, é a sua união, sua organização e solidariedade” *Lenin

segunda-feira, 13 de março de 2017

Economia Infraestrutura - O Brasil ganha com obras no exterior?

Condenadas pelos preconceitos e hipocrisias direitistas, realizações como o Porto de Mariel representam um grande lucro para o país.

                        
O porto "comuno-fidelista" garantiu 150 mil empregos no Brasil, por cinco anos
Do total exportado, 682 milhões de dólares foram financiados pelo BNDES e integralmente desembolsados em reais no Brasil para pagamento de fornecedores brasileiros, sem remessa de 1 dólar sequer a Cuba ou outros países. Um encaminhamento diferente, portanto, daquele sugerido pelo noticiário. O governo cubano pagou à vista 287 milhões de dólares, equivalentes a 30% do valor do projeto, metade para quitar exportações brasileiras.

Fez um ano a construção do Porto de Mariel, em Cuba, tornou-se um dos argumentos brandidos contra o governo do PT, Lula e os critérios de financiamento do BNDES. O Brasil estaria contribuindo também com o progresso do comunismo fidelista. Na verdade, a história do porto é um exemplo dos benefícios gerados ao País pelas exportações de serviços de engenharia. Construído pela Odebrecht, custou 957 milhões de dólares, dos quais 802 milhões correspondem a exportações brasileiras de bens e serviços de alto valor agregado.

O projeto movimentou uma cadeia de 400 empresas fornecedoras brasileiras dos setores automotivo, químico, siderúrgico, metalúrgico, de máquinas e equipamentos, com a exportação de estruturas metálicas, tubos de aço, geradores, caminhões, equipamentos de laboratório e outros produtos requeridos direta ou indiretamente pelos serviços de engenharia.
 
Dilma e Raúl Castro inauguram Mariel / Créditos: www.cubadebate.cu/AFP
Abriu o mercado externo também para pequenas e médias indústrias de botas plásticas, pontes metálicas e itens de segurança, entre outros produtos. Por cinco anos, sustentou mais de 150 mil empregos no Brasil. Afrânio Cheire, presidente da Volvo América Latina, uma das empresas com exportações para Cuba, defende “uma política de longo prazo para a exportação de serviços de engenharia, com financiamento e garantia de crédito de risco”. 
Longe de ser uma obra marginal desmerecedora do investimento brasileiro, conforme apresentam a oposição e a mídia brasileiras, o Porto de Mariel é o maior do Caribe e tornou-se um polarizador dos investimentos na ilha, avaliada por consultores de negócios como um “país startup” (novo no mercado e com negócios promissores) comparável a Israel em 1948.

Administrado pelo Port of Singapore Authority, de Cingapura, é uma plataforma multimodal com um atracadouro de águas profundas e inclui uma zona de desenvolvimento especial de 500 quilômetros quadrados com dezenas de empresas brasileiras e facilidades para exportar aos países do Caribe e Estados Unidos, segundo Thomaz Zanotto, diretor da Fiesp. Com a notícia do reatamento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a ilha, ocorrido em junho, as consultas de empresas estrangeiras interessadas em investir em Mariel saltaram de 35 para mais de 300 desde dezembro. 
 
Créditos: Bruno Domingos/Reuters/Latinstock

A perspectiva de suspensão do embargo econômico e financeiro imposto em 1962 pelos Estados Unidos, graças à pressão de empresas norte-americanas e do governo chinês, indica a existência de uma janela de oportunidade para companhias brasileiras ainda ausentes de Cuba. Elas podem ocupar o espaço antes da avalanche de investimentos dos Estados Unidos prevista a partir do fim do bloqueio. O governo cubano conversa com o Canadá e outros países para indicar as promissoras oportunidades de negócios nas áreas de construção pesada, habitação popular, química, agricultura, bens duráveis e semiduráveis, entre outros setores. 

Mariel está na origem das críticas a Lula por supostas interferências em favor de empresas, em especial da Odebrecht. O porto não é, entretanto, uma obra da sua gestão, ao contrário do sugerido pelo noticiário. O terminal foi inaugurado pela presidenta Dilma em janeiro de 2014.

As nossas empreiteiras são uma fonte de lucros extraordinária para o Brasil e consequências importantes para a economia e a sociedade. Os governos e as empresas de cerca de dez países disputam cada dólar da exportação de serviços de engenharia, geradora de encomendas para as indústrias locais, empregos e divisas. 

No momento, a Lava Jato levanta os malfeitos da Petrobras, originados na ditadura militar e já exacerbados no governo FHC. Em entrevista à revista alemã Capital publicada em agosto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o escândalo de propinas em contratos da Petrobras começou no governo Lula. Esqueceu-se de reiterar o pedido para não lerem o que disse, e escreveu. No livro Diários da Presidência, a ser publicado neste ano, admite que soube do esquema de corrupção na estatal em seu primeiro mandato e nada fez para enfrentá-lo. 
O rei da Suécia fez lobby para o seu caça / Créditos: Ricardo Moraes/Reuters/Latinstock

Punir corruptos e corruptores é justo e salutar, mas as empresas têm de permanecer a bem do País. Com a justificativa de evitar prejuízo às investigações, promotores da Lava Jato tentam dificultar no Tribunal de Contas da União e na Advocacia-Geral da União o uso do acordo de leniência, espécie de delação premiada para pessoas jurídicas.

A convocação anunciada na quinta 15 pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, de um grupo de juristas para estudar a abertura ampla do Brasil às construtoras estrangeiras, aumenta as preocupações quanto ao futuro do setor e da economia. O abandono das obras do metrô de São Paulo pela espanhola Isolux-Corsán-Corviam e o atraso da chinesa State Grid na construção da uma usina hidrelétrica na divisa de Mato Grosso e Pará, entre inúmeras irregularidades de empresas estrangeiras no País, deveriam desencorajar aquela abertura. As construtoras brasileiras, ao contrário, são prestigiadas no exterior por sua regularidade e qualidade. 

Lula, nos seus mandatos, fez apenas o que compete ao presidente da República: cuidou de promover os serviços de engenharia do País. No Brasil e no resto do mundo, as relações entre presidentes, os interesses de empresas privadas e os dos seus países são corriqueiras. O presidente Barack Obama empenhou-se ao máximo para a aprovação neste ano pelo Senado dos Estados Unidos, em regime de urgência, do Tratado Transpacífico, um acordo de comércio entre 12 países que é uma carta branca para as empresas privadas e afronta os poderes regulatório e disciplinador do Estado e da Justiça.
Sarkozy tenta vender o caça Rafale. Sem êxito / Créditos: Paulo Vitor/Estadão Conteúdo

Nicolas Sarkozy assumiu pessoalmente as negociações para a venda de 36 caças Rafale ao Brasil, entre 2009 e 2010 e viajou a Brasília para acelerar as tratativas. Em 2012, o rei da Espanha, Juan Carlos I, visitou o País para “promover interesses empresariais”, conforme noticiaram a imprensa local e a europeia. Em maio deste ano, o primeiro-ministro da China, Li Keqiang, tomou o mesmo destino para costurar com o governo e empresários 35 acordos de investimentos e financiamentos em infraestrutura e outras áreas. Não há informação sobre qualquer questionamento, por parte da oposição e da imprensa brasileiras, da atuação dos mandatários na promoção direta dos interesses das empresas dos respectivos países. 

Os exemplos multiplicam-se. “Em visita ao Brasil, reis da Suécia farão ‘lobby’ para a escolha do Gripen NX”, o concorrente do Rafale, destacaram sem sobressalto os jornais em março de 2010. O acordo foi assinado em agosto do mesmo ano e na terça-feira 20, a presidenta Dilma Rousseff, em viagem àquele país, visitou as instalações da fábrica dos aviões. As mobilizações pró-empresas privadas dos chefes de Estado, bancadas pelos contribuintes, foram consideradas normais em todos os casos. 

Na relação com empresas, a comparação com FHC é amplamente favorável a Lula em um aspecto essencial, o da separação entre os interesses público e privado. O Instituto Lula foi criado em 2011, três anos depois do seu segundo mandato presidencial e não recebe dinheiro de estatais nem oferece deduções fiscais sobre contribuições recebidas, uma forma de reduzir a receita da arrecadação do Estado.
Créditos: Carlos Garcia Rawlins

Instituto FHC foi criado de fato em novembro de 2002, em um banquete para arrecadação de fundos realizado no Palácio da Alvorada. O presidente em pleno exercício do cargo recolheu 7 milhões de reais para o seu empreendimento, segundo notícia da revista Época rapidamente retirada da internet pela própria publicação, conforme denunciou o site Diário do Centro do Mundo. 

Com uma busca no Google, é possível localizar cópias fotográficas da matéria “FHC passa o chapéu”. Entre os convivas estavam Emilio Odebrecht, da construtora do mesmo nome, e Luiz Nascimento, da Camargo Corrêa. No tratamento seletivo dado pela imprensa, as duas empresas favoreceram Lula e por ele seriam beneficiadas. Nada a respeito do seu antecessor. A doação da Camargo Corrêa ao Instituto Lula escandalizou a mídia, previsivelmente emudecida diante da mesma iniciativa da empresa em relação ao Instituto FHC. Este recebeu em 2006 uma doação de 500 mil reais da empresa pública Sabesp, então presidida pelo tucano Dalmo Nogueira Filho, no governo do também tucano Geraldo Alckmin, para um projeto com incentivos fiscais da Lei Rouanet, que permite desconto do Imposto de Renda. 

Houvesse tratamento equânime, viagens e palestras de FHC relacionadas a empresas deveriam receber uma atenção semelhante àquela dada às de Lula. Em 2000, acompanhado do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, o tucano visitou a Linha 4 do metrô de Caracas e a segunda ponte sobre o Rio Orinoco, construídas pela Odebrecht, a mesma apontada como objeto de lobby de Lula. Em abril de 2004, viajou ao Oriente Médio com o Banco Itaú para palestras a potenciais investidores no Brasil. Sob o mesmo patrocínio fez palestra a investidores em Pequim, em 2012.  
 
Arqueduto da OAS no Chaco (Argentina) / Créditos: Carlos Garcia Rawlins/Reuters/Latinstock
Cinco meses depois de iniciar o primeiro mandato, Fernando Henrique protagonizou a sua ação mais indefensável em relação a uma empresa, de gravidade inigualada por presidentes antecessores e sucessores. Em telefonema ao presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, em 30 de maio de 1995, informou a assinatura do contrato do Projeto Sivam, o sistema de vigilância da Amazônia, entre o governo brasileiro e a empresa norte-americana Raytheon.

Um negócio de 1,4 bilhão de dólares, abocanhado sem concorrência pela firma. Clinton, o presidente mais favorável às empresas desde Grover Cleveland, eleito para o cargo em 1855 e em 1893, fizera lobby pela escolha da Raytheon, processada pelo governo dos EUA por superfaturamento. A outra pré-qualificada, a francesa Thomson, teve estudos e documentos do projeto roubados do escritório no Rio de Janeiro, enquanto a CIA denunciava nos Estados Unidos a existência de corrupção no Brasil na escolha da empresa para tocar o Sivam. Pouco depois, a francesa foi excluída do processo. 

FHC informou aos jornais que a contratação da Raytheon ocorrera no governo anterior. Não colou. Sob Itamar Franco, a escolhida para gerenciar a criação do Sivam foi a empresa brasileira Esca, indicada em 1993 pelo Ministério da Aeronáutica e pela Secretaria de Assuntos Estratégicos.
 
Ponte da Odebrecht sobre o Orenoco / Créditos: Carlos Garcia Rawlins/Reuters/Latinstock

Os contratos de exportação de serviços de engenharia saíram do zero para 2,4% do total mundial nos últimos dez anos. Um feito auxiliado pela projeção e respeito mundiais conquistados pelo Brasil sob a Presidência de Lula e por sua atuação em defesa do País em viagens e conferências realizadas após 2008. A exportação de serviços, acusam os seus críticos, implicaria financiar obras de infraestrutura no exterior que fazem falta ao Brasil, em geral sem licitação e de forma não transparente.

O financiamento incluiria bens estrangeiros, com prejuízos para a indústria nacional e perdas provocadas pela remessa de divisas ao exterior. As alegações não correspondem à realidade. “São mitos, mas, no Brasil, mitos parecem verdades”, contesta José Augusto de Castro, presidente da Associação do Comércio Exterior do Brasil.

Para o economista Delfim Netto, colaborador de CartaCapital, “a demonização do financiamento à exportação de serviços de engenharia é a maior afirmação do ‘complexo de vira-lata’ brasileiro”. O ex-ministro considera “insensato” sugerir que os empréstimos do BNDES àquela atividade são um “prejuízo nacional” e em razão disso expor o banco a uma Comissão Parlamentar de Inquérito. O oposto é verdadeiro. O Brasil não financia gastos locais e empregos no exterior, ao contrário das agências de créditos à exportação em outros países. 

Os financiamentos do BNDES cobrem somente bens nacionais e empregos no Brasil. Os recursos são liberados ao exportador no País, em reais. Inexiste remessa de moeda estrangeira ao exterior. O importador paga em dólares ao BNDES o valor principal e os juros. 

Os exportadores de serviços de engenharia não têm direito a manter divisas no exterior, uma alternativa permitida apenas aos exportadores de bens. O pacote de financiamento de longo prazo inclui os insumos consumidos na obra e segue as práticas mundiais. 

Os financiamentos à exportação adotam princípios, valores, custos, garantias e prazos compatíveis com os da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, apesar de o Brasil não fazer parte da entidade. As exportações financiadas de serviços de engenharia sofrem um controle rigoroso. São registradas no Sistema Integrado de Comércio Exterior, o Siscomex, no Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, o Siscoserv, auditadas pelo Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União e fiscalizadas pela Receita Federal.     

Ponte da Odebrecht sobre o Orenoco / Créditos: Carlos Garcia Rawlins/Reuters/Latinstock
As exigências para a exportação de serviços de engenharia brasileiros são mais rigorosas em comparação às vigentes nos países da OCDE e nos Eximbanks, os bancos destinados à promoção das exportações, uma instituição inexistente aqui. A taxa de juros anual praticada pelo Brasil no segmento é de 3,64% ao ano e taxa de referência da OCDE é de 1,87% para operações em dólar e prazos de cinco anos ou mais longos.  

“Apesar de autorizadas pela OCDE, algumas práticas de apoio às exportações não são permitidas pelas normas brasileiras, reduzindo a nossa competitividade diante da concorrência internacional”, aponta Rodrigo Azeredo Santos, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Ministério das Relações Exteriores.
Nos países daquele bloco, admite-se apoio a gastos locais em até 30% do valor total e a gastos em outros países até 15% do projeto, e não há obrigatoriedade de contragarantias adicionais à garantia soberana, do próprio país. O Brasil não admite apoio àqueles gastos e as contragarantias são obrigatórias. Os Eximbanks dos Estados Unidos, China e Espanha adotam práticas de aceitação de garantias e de financiamento de gasto local não autorizadas pelas normas brasileiras. 

A exportação de serviços de engenharia, segundo levantamento da LCA Consultores, mantém 1,2 milhão de empregos permanentes no Brasil, uma cadeia de fornecedores de 2,8 mil empresas, 76% delas de porte pequeno ou médio, e cada dólar de exportações gera 3 dólares na economia brasileira. Está entre as duas únicas atividades comerciais externas com resultados positivos no balanço de serviços brasileiro, ao lado da comercialização de serviços técnicos. Nos últimos dez anos, gerou 20 bilhões de dólares ao País. O risco é baixo, nunca houve default associado às exportações de serviços de engenharia.

Obama não deixou por menos / Créditos: Saul Loeb/AFP
Poucos países exportam regularmente serviços de engenharia. Destacam-se a Espanha (participação de 14,7%), China (14,5%), Estados Unidos (13%), França (9,3%), Alemanha (8,6%), Coreia (7,8%), Itália (5,3%), Japão (4,1%) e Turquia (3,8%). O Brasil entrou nesse mercado em meados dos anos 1970, com financiamentos do Fundo de Financiamento à Exportação, o Finex. Perdeu espaço nos anos 1990 e só retornou em 2004, com o apoio do Programa de Financiamento às Exportações, o Proex, do BNDES. Em oito anos, a participação alcançou 18% do mercado latino-americano. Em 2014, cada dólar desembolsado pelo Proex viabilizou 57 dólares de exportações. 

prazo médio entre a contratação e o desembolso dos financiamentos no Brasil é de 487 dias. Na China, são 120 dias e nos Estados Unidos, 60 dias. Essa diferença, somada às taxas e condições menos favoráveis do financiamento brasileiro, fazem o País perder concorrências como a de um gasoduto de 42 quilômetros no sul do Peru, no valor de 20 bilhões de dólares, arrematado por China e Índia. 

Os serviços de engenharia exportados são bons para o Brasil e também para os países receptores dos investimentos. Obras como o sistema de transporte de energia elétrica Uige-Maquela, construído pela Camargo Corrêa em Angola, o aqueduto da OAS na província do Chaco, na Argentina, e a barragem erguida pela Andrade Gutierrez no Rio Incomati, na região de Moamba-Major, em Moçambique, melhoraram as condições de vida da população e deram uma nova dinâmica econômica às respectivas regiões. Para combater, como convém, a corrupção, não há de ser preciso demolir estruturas indispensáveis ao progresso do Brasil. 

*Reportagem publicada originalmente na edição 874 de CartaCapital, com o título "Obras brasileiras"


Economia - Capital A democracia capturada pelas grandes empresas

Relatório mostra como companhias ditam regras e leis que as beneficiam e invertem a lógica de priorização da esfera pública.

                                                                                                                                                      Regina Santos/ Norte Energia (14/05/2013)
Construção de Belo Monte deixa claro interesses do capital privado acima dos da população local

Diferentemente do esperado, as políticas públicas não são elaboradas pelo Estado em prol da sociedade civil, mas por grandes empresas que exercem um poderio cada vez maior sobre os Três Poderes. Em um estágio extremo do capitalismo, grandes empresas protagonizam um mecanismo de “captura da esfera pública” e passam a ditar leis e regras. O Estado inverte, então, a lógica, e prioriza interesses privados em vez de públicos.

É contra essa dinâmica que o grupo de ativistas e pesquisadores Vigência! lançou recentemente o relatório A privatização da democracia: Um catálogo da captura corporativa no Brasil. O documento de 144 páginas, elaborado em conjunto com o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas) com apoio da ONG britânica Oxfam, esmiúça a entrada agressiva do capital privado em áreas como alimentos e biossegurança, educação, finanças e juros, meio ambiente, mídia, saúde, segurança e habitação, e fornece uma radiografia da atuação das grandes empresas nesses setores.

“Mostramos um processo de privatização da democracia, no qual grandes grupos econômicos, e seus interesses privados, se apropriam e controlam a esfera de decisões a partir de seus interesses”, explica a geógrafa Yamila Goldfarb, que na publicação escreve sobre alimentos transgênicos.
O modus operandi se dá através de práticas como o lobby – não reconhecido ou regulado no Brasil – e o que se chama de “porta giratória”, ou seja, a contratação de ex-gestores públicos pela iniciativa privada ou vice-versa.

No Brasil a prática não é crime e são poucos os cargos públicos que exigem do novo ocupante uma quarentena de quatro meses após a demissão. Assim, o mecanismo é amplamente utilizado, por exemplo, pela indústria farmacêutica. “O ex-presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, demitido do órgão em outubro de 2014, por exemplo, foi contratado pela Interfarma em maio de 2015”, lembra o relatório.
Logo na introdução, o economista Ladislau Dowbor explica que a ideia é, por meio de estudos de caso em diferentes setores, “fornecer um panorama da influência que as empresas exercem sobre os processos políticos no Brasil de forma a favorecer seus interesses privados”. Constata-se, então, “um ciclo perverso, que despreza os interesses de diversas parcelas da sociedade brasileira – sobretudo os dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade.” 

Esse sistema acaba por custar caro a todos. Enquanto os pequenos produtores agrícolas podem ficar reféns dos “contratos de serviço” com grandes processadoras de alimentos ou com empresas de agrotóxicos ou sementes transgênicas vendidas por transnacionais, no mercado imobiliário leva a uma desenfreada especulação e na educação pode priorizar o lucro em detrimento da qualidade do ensino.
Na esfera ambiental, atinge diretamente povos originários e altera formas de vida, como constatou-se no processo de construção de barragens e obras da usina de Belo Monte, no Pará.

As consequências também são perceptíveis quando se analisa a concentração de renda e a consequente desigualdade trazidas por essa dinâmica. Dados levantados pela Oxfam mostram que em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas, e que a riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 45%, saltando de 542 bilhões de dólares em 2010 para 1,76 trilhão em 2015.

 O rendimento anual médio dos 10% mais pobres da população mundial, por outro lado, aumentou menos de 3 dólares em quase um quarto de século, sendo que sua renda diária aumentou menos de um centavo por ano. Neste contexto, a América Latina se mostra especialmente preocupante, uma vez que tem 0,5% de sua população economicamente ativa dona de 43% da riqueza da região, enquanto e os 8% mais ricos possuem 87% dela.

Dentre os inúmeros exemplos do poder que as empresas exercem no Brasil, um dos mais expressivos talvez seja quando se analisa a política fiscal. O relatório observa que, apesar de o Brasil ser um dos únicos países do mundo a não taxar lucros e dividendos de empresas no imposto de renda de pessoa física (o que lhe renderia uma receita de 43 bilhões de reais por ano), “a elite econômica ameaça retirar o apoio ao governo a cada tentativa de ajustar a política fiscal no sentido de repartir a conta com o setor mais rico, e afirma que a única solução para equilibrar as contas da nação é cortar gastos sociais.”

Tais desonerações fiscais concedidas pelo governo brasileiro a diversos setores custaram ao País 260 bilhões de reais, sendo 68 bilhões de reais apenas entre 2011 e 2014.

Evidências

“O poder das empresas não é uma novidade, mas o relatório identifica exemplos concretos dos mecanismos dos quais elas se utilizam para influenciar o Executivo, o Legislativo e o Judiciário no país”, observa o cientista político Gonzalo Berrón, um dos organizadores da publicação. Para Berrón, enquanto o Legislativo e o Executivo são os mais influenciados pelo grande capital, através de regras e projetos de lei, o Judiciário incorpora tal influência na esfera cultural.

Além de denunciar os abusos, A privatização da democracia: Um catálogo da captura corporativa no Brasil aponta algumas “rotas de fuga” que podem ajudar no desmantelamento de uma cultura corporativa que alimenta desigualdades e ofusca o protagonismo das necessidades da sociedade civil perante o Estado.
São elas: uma ampla reforma política; o aperfeiçoamento das leis anticorrupção; proibição efetiva ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais e de partidos; fixação de limites baixos para as contribuições pessoais para os partidos e as campanhas; promoção do financiamento público dos partidos e das campanhas.

“O que propomos tem um aspecto anticapitalista, mas não significa que para mudar tenhamos de sair do sistema capitalista Acreditamos na possibilidade de melhorar o quadro, regular, impor limites”, afirma Yamila.
Para isso, ela observa, é preciso ampliar o controle público da economia, a participação social na implementação de políticas públicas, uma maior transparência que promova uma participação efetiva da sociedade. “Sabemos que as empresas são uma parte da sociedade que merece ser ouvida, mas assim como os movimentos sociais deveriam ser. O problema-chave é a assimetria que existe para esses atores na hora de influenciar e elaborar políticas.” 

A ordem internacional perpetua a exclusão dos 99%. Até quando?

Novo relatório de organização inglesa revela que 62 pessoas concentram a mesma riqueza que os 3,6 bilhões mais pobres do mundo. 

Desde 2000, a população mais pobre recebe apenas 1% do aumento da riqueza. Para o 1% mais rico, a fatia é de 50%


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Por Karen Honório 
Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial. Metáfora musical para explicar a realidade do mundo no exato pós Guerra Fria, a canção de Caetano Veloso apontava o descompasso entre uma visão otimista do mundo que surgia a partir da vitória econômica e ideológica do capitalismo em sua fase neoliberal e as condições de precariedade de milhões de pessoas que estariam fora dessa “nova ordem” no alvorecer dos anos 1990. Tudo era construção e já era ruína.
Esticando no tempo seu sentido, a música ainda é útil para entender a complexidade das relações internacionais e serve de trágica alegoria para pensar o atual momento. Conforme divulgado no último dia 18 de janeiro pelo relatório da desigualdade global produzido pela organização inglesa Oxfam,1% da população mundial acumula mais riquezas do que todo o resto do mundo somado. 

Os dados são estarrecedores, 62 pessoas têm a mesma riqueza que 3,6 bilhões dos indivíduos mais pobres do mundo. A metáfora caetaniana ainda é válida: há cada vez mais pessoas excluídas das benesses da ordem mundial. O relatório também aponta que a riqueza detida pela metade mais pobre caiu em um trilhão de dólares nos últimos cinco anos.
Desde o ano 2000, a população mais pobre do mundo recebe apenas 1% do aumento da riqueza global enquanto que o 1% mais rico desfruta de 50% dessa riqueza no mesmo período. O aumento do abismo entre os mais ricos e os mais pobres também garante a manutenção de estruturas nossas sociedades, como o machismo.

O estudo da Oxfam aponta que, em países com maior desigualdade de renda, as diferenças entre homens e mulheres no que toca ao acesso à saúde, educação, participação no mercado de trabalho e na política são maiores do que em países menos desiguais.

No entanto, o que chama atenção no relatório são as explicações para tal realidade: evasão fiscal, lucros altíssimos por parte do 1%, superexploração das condições de trabalho, paraísos fiscais e as capacidades cada vez menores dos Estados controlarem a saída de capitais de seus territórios. Conforme o estudo aponta, a evasão fiscal é sistemática.

A Oxfam analisou as 200 empresas mais importantes do mundo e comprovou que nove em cada dez estão presentes em paraísos fiscais. O reflexo dessas práticas nas capacidades dos países em melhorarem as condições de vida de sua população mais pobre é direta.

Um exemplo disso é que quase 30% das riquezas dos africanos mais ricos são mantidos offshore. Segundo o relatório, esse valor seria suficiente para salvar a vida de 4 milhões de crianças africanas e empregar professores suficientes para que todas as crianças do continente pudessem estudar.

30% das riquezas dos africanos mais ricos são mantidos offshore. O valor poderia empregar professores para todas as crianças do continente.

Ao identificar o poder de pressão e influência das grandes corporações e do setor financeiro através de lobbies junto aos governos como principal catalisador desse cenário desolador, torna-se evidente dentro dessa dinâmica o papel das ações dos Estados na esfera internacional. 

As estruturas e instituições internacionais construídas em âmbito multilateral pelos países, principalmente no que tange às regras de funcionamento do comércio internacional, são decisivas para tal quadro. Estamos construindo ativamente o aumento da desigualdade global.

A ordem mundial – regras, princípios, valores, organizações internacionais e demais estruturas materiais ou simbólicas que moldam e hegemonizam o atual funcionamento das relações internacionais – tem impacto no ambiente doméstico político, fiscal e tributário dos países e consequentemente na vida das populações. 

A impossibilidade de acesso a serviços básicos como educação, saúde, moradia, bem como os abismos sociais e a superexploração da força de trabalho devem ser entendidas como resultado direto de uma rede de normas, leis, isenções fiscais, subsídios financeiros que são gestadas no ambiente internacional e vão sendo internalizadas pelos governos nacionais em suas estruturas estatais num movimento duplo entre o interno e externo com um objetivo principal: facilitar as ações do 1% mais rico. Não há casualidade. 

Os acordos comerciais multilaterais negociados em fóruns como a OMC buscam a padronização de legislações fiscais, comerciais, tributárias, leis trabalhistas, investimentos externos dentre outras por parte dos países. Isso garante que as estruturas de dominação que permitem a livre-circulação dos capitais monopolistas transnacionais sejam consolidadas internamente pelos Estados.

Conforme bem marcado pelo estudo, as mudanças ocorridas nas políticas econômicas nas últimas décadas - como as decorrentes da privatização, da desregulamentação, do sigilo financeiro e a flexibilização das leis de controle sobre os capitais - potencializou a capacidade dos muito ricos concentrarem suas riquezas.

Dentro desse quadro, dois novos acordos multilaterais são chave para observamos como essas redes de regras possibilitam o controle da ordem internacional pelo 1% mais rico.
A primeira é a Parceria Transpacífica ( TTP, sigla para Transpacific Trade Partnership) mega-acordo que envolve 12 países (EUA, Japão, Canadá, México, Austrália, Nova Zelândia, Brunei, Cingapura, Malásia, Vietnã, Chile e Peru). O acordo foi fechado no fim do ano passado e só aguarda a ratificação do congresso norte-americano para entrar em vigor.
Manifestante protesta contra a Parceria Comercial Transpacífica na Nova Zelândia
A outra é a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos (TTIP, sigla para Transatlantic Trade and Investment Partnership) negociada entre os Estados Unidos e a União Europeia.
Ambos trazem consigo novas regras que dão ainda mais poder para a atuação das grandes corporações nos países que participam do acordo. Um exemplo é a possibilidade de empresas processarem governos nacionais caso achem que políticas públicas estão prejudicando suas margens de lucro, o chamado “direito dos investidores”.

Essa medida impactaria intensamente a capacidade dos governos em definir suas políticas em setores-chave para as populações, como leis trabalhistas, o aumento do salário mínimo, dentre outras.

Outro ponto emblemático desses acordos reside nas questões de propriedade intelectual. É previsto normas mais rigorosas para essas. As quebras de patente farmacêuticas, por exemplo, teriam seu prazo aumentado de 80 para 120 anos. Vale lembrar que o lobby das grandes empresas, principalmente farmacêuticas norte-americanas, durante as negociações do TTP foi decisivo para o estabelecimento das regras do acordo.

Uma vez que entrem em vigor e sejam internalizadas nas legislações nacionais, o provável é que essas normas e regras passem a ter aplicação universal no comércio internacional por envolverem um número considerável de países e os Estados Unidos. Os custos da não-aplicação dessas “ideias-força” num cenário de pleno funcionamento do TTP e do TTIP poderão ser muito altos para os governos nacionais no tabuleiro econômico internacional.

Custos ainda maiores serão para as populações pobres desses países. A experiência ao longo dessas décadas de desregulamentação desenfreada e apropriação das políticas públicas pelo capital financeiro nos prova que outro caminho não é apenas necessário, mas urgente.
Os dados da Oxfam nos apontam uma cruel realidade: a ordem internacional perpetua a exclusão, reproduz a desigualdade e a apropriação da produção social da riqueza por poucos gigantes. Até quando?
Karen Honório é professora da Unila, membro do Núcleo de Pesquisa em Política Latino-Americana (Nupela) e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/ GR-RI.


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