Desenvolvimento e socialismo
Falar em socialismo deixou de ser
um despautério. A crise internacional desmoralizou os fanáticos do mercado. Mas
qualquer mudança social tem de ser pensada em meio a um projeto de desenvolvimento
viável e no bojo das disputas políticas reais da sociedade brasileira.
(Publicado
na revista Margem Esquerda no. 17, Boitempo Editorial, 2011)
Introdução
A possibilidade concreta de se viabilizar
uma transição ao socialismo está hoje fora da agenda da sociedade brasileira. A
hegemonia burguesa consolidou-se, após um longo período de defensiva das idéias
socialistas. Parte da esquerda formada a partir dos anos 1970-80 adaptou-se e
ajudou a consolidar tal hegemonia, conferindo-lhe inédita legitimidade.
Essa parcela significativa da esquerda
– que inclui lideranças políticas, sindicais e populares – dá nova qualidade ao
pacto de classes estabelecido no Brasil, após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva
à presidência, em 2002. Estabeleceu-se uma aliança sólida entre tais setores e
o grande capital financeiro e industrial e o agronegócio, em torno de um
projeto de desenvolvimento. O detalhamento de tal pacto pode ser lido aqui.
Embora se percebam vários matizes
no interior desse grande acordo, a maior parte de seus agentes se unifica em
torno de algumas linhas-mestras: 1. Absoluta prioridade aos setores rentistas,
para os quais se destina cerca de 47% do orçamento federal, sob a rubrica de pagamento
dos serviços da dívida pública, baseados nos juros reais mais altos do mundo;
2. Manutenção de uma taxa de câmbio valorizada, que favorece o capital externo
e penaliza os setores industriais; 3. Livre circulação de capitais; 4. Expansão
do mercado interno, através da elevação do salário mínimo e de programas de
transferência de renda; 5. Diversificação dos parceiros comerciais do Brasil no
plano externo e 6. Manutenção de toda ordem jurídico-institucional criada para
a implantação do modelo neoliberal.
Neoliberalismo puro e duro
Não se trata mais do
neoliberalismo puro e duro dos anos 1990, quando aconteceram as privatizações em
massa e o grosso das reformas constitucionais que garantiram a nova ordem. Tudo
se deu ao custo de aumento do desemprego e de três crises consecutivas na
economia
brasileira. Esse viés mais radical do mercadismo perdeu legitimidade, mas
permanece vivo nas páginas e telas da grande mídia e nos partidos de direita.
Atualmente, mantidas suas características básicas, o modelo se arraigou na
sociedade brasileira, gerando moderadas taxas de crescimento econômico, além de
uma melhoria no padrão de vida dos assalariados e da adoção de políticas sociais
focadas.
Num plano muito minoritário em termos
de expressão política, existe um projeto à esquerda – que contempla também
várias nuances. Na verdade, não se conforma nitidamente como alternativa, mas
como ideário disperso em alguns setores sociais. Ele poderia, genericamente,
ser classificado como democrático-popular. Essa vertente envolve frações dos
trabalhadores, da pequena e média burguesia e mesmo partes minoritárias da
burguesia. Algumas dessas formações encontram-se abrigadas no pacto de classes
majoritário e, vez por outra, exibem
descontentamentos com os rumos da orientação geral.
Como tratar a questão da transição
do capitalismo para o socialismo nessas balizas concretas? Como colocar o tema
no plano da tática – ou seja, da política – e não no terreno de uma estratégia
desvinculada da formação social e econômica e social atual do país?
Este pequeno texto não responde a
tais questões. Elas seguem em aberto nos dias que correm. Busca-se aqui tão
somente apontar a necessidade de articulação entre um projeto de
desenvolvimento democrático e popular nos marcos do capitalismo realmente
existente e a luta pelo socialismo.
Problema tático
Duas décadas depois da derrocada
dos regimes do socialismo real, que gerou uma aguda crise política e ideológica
na esquerda mundial, e quase uma década após a chegada ao poder de um partido
de origem popular no Brasil, o que significa exatamente advogar uma ruptura
socialista?
Um objetivo como esse não pode ser uma construção apenas doutrinária, desvinculada
das lutas e condições da realidade política. Ruptura – ou revolução - e
socialismo não são valores ou categorias morais. São, antes de tudo, objetivos
políticos, inseridos na real disputa de
forças na sociedade. Isso implica estabelecer metas de curto, médio e longo
prazo, examinar quem são os sujeitos políticos dessa empreitada, os aliados e
os inimigos e traçar um programa mínimo e um programa máximo de ação. Em outras
palavras, são partes da construção de uma tática e de uma estratégia política.
Não se trata assim de tarefa acadêmica. Uma articulação desse tipo deve captar
uma necessidade expressiva na sociedade, tendo como núcleo fundamental os trabalhadores,
os setores pobres da cidade e do campo e parcelas da pequena burguesia. Outras
frações de classe podem eventualmente se juntar nessa empreitada, dependendo
das condições concretas da disputa política.
Revolução em xeque
Ao longo das últimas duas décadas,
revolução passou a ser um conceito tido como obsoleto. A queda do muro de
Berlim, em 1989, a derrota eleitoral dos sandinistas na Nicarágua, em 1990, o
desmanche da União Soviética, em 1991, e a supremacia do modelo neoliberal em
quase todo o mundo, acuaram as forças que pregavam mudanças na ordem social. A própria
idéia de revolução, no sentido de uma transformação radical da realidade, foi
colocada em xeque. Ela voltou à baila primeiro pelas mãos do presidente
venezuelano, Hugo Chávez, que desde sua chegada ao poder, em 1998, alardeia
comandar uma revolução em seu país. Mais recentemente, as mobilizações populares
nos países árabes chegaram a ser chamadas de revolução. Independente da
exatidão ou não na utilização do termo, o certo é que ele saiu do limbo a que
foi relegado há duas décadas.
O que é uma revolução? As
definições sobre uma mudança de tal natureza foram sintetizadas por Caio Prado
Júnior (1907-1990):
Revolução, em seu sentido real e
profundo, significa o processo histórico assinalado por reformas e modificações
econômicas, sociais e políticas sucessivas que, concentradas em período
histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade,
e em especial das relações econômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes
classes e categorias sociais. [1]
Fernando Claudín (1915-1990),
histórico dirigente comunista espanhol, destaca um traço fundamental nas
revoluções:
Toda revolução social, tanto
socialista como burguesa, compreende como momento necessário a revolução política,
a passagem do poder a uma nova classe. [2]
O debate sobre processos
revolucionários pode levar à discussão de outro conceito banido da agenda política:
o projeto socialista. Se, como dizia Marx, o socialismo representará o desenvolvimento
máximo das forças produtivas, com a disseminação do bem-estar e da qualidade de
vida, há que se superar o desenvolvimento capitalista, mudando sua qualidade, guardando
algumas de suas características, mas negando outras, essenciais, para a
construção de uma nova síntese que pode ser genericamente chamada de
desenvolvimento socialista.
A esquerda e o desenvolvimentismo
Embora o desenvolvimento econômico
sob o capitalismo seja um projeto essencialmente burguês, é preciso levar em
conta algumas de suas características. No caso brasileiro recente, o aumento da
massa salarial, a expansão dos níveis de emprego e a disseminação do crédito acabam
por atrair largos setores dos trabalhadores para o pacto dominante. A melhoria
imediata dos padrões de vida, como acontece atualmente em vários países da
América Latina, após duas décadas de estagnação, consolidou a idéia que o desenvolvimento
é igualmente bom para todos.
Celso Furtado (1920-2004), o mais
radical e talentoso reformista burguês do Brasil, diferenciava desenvolvimento
de crescimento. Para ele, “O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem
se fundando na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de
modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social
subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição
suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando
o projeto social prioriza a efetiva melhoria das
condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento”
[3].
Ou seja, trata-se de um processo de transformação social. Essa transformação
será tão mais profunda quanto mais a esquerda socialista souber empreender uma
luta política para fazer aliados e formular programas na luta por um
desenvolvimento distributivista, democrático
e ecologicamente sustentável, que aponte para o socialismo. Não se coloca aqui
em dúvida que a transformação almejada será socialista. Discute-se a tática a
ser empreendida. Ela depende dos rumos a serem traçados, mas sobretudo da luta
e das condições política concretas.
Para definir os atores sociais de uma empreitada dessa envergadura, é preciso
apontar o que se quer e onde se deseja chegar. A estratégia de transformação
conformará a frente de interesses e de interessados, deixando claro quais os
beneficiados e quais os prejudicados com o processo.
O tal do reboquismo
Ao mesmo tempo, a esquerda não
pode permanecer como caudatária do desenvolvimentismo burguês. Isso aconteceu
de forma clara depois da divulgação da Declaração de Março de 1958, do Partido
Comunista Brasileiro (PCB). A íntegra do texto pode ser lida aqui.
Vale a pena estudar aquele documento. Ele é contraditório, mas extremamente
interessante. O texto tem o mérito de produzir um giro na atuação partidária,
que havia adotado concepções ultra-esquerdistas, estreitas e sectárias após a
publicação dos manifestos de janeiro de 1948, de agosto de 1950 e das resoluções
do IV Congresso, de 1954. Todos representam reações à colocação do partido na
ilegalidade, em 1947. O resultado foi o isolamento do PCB das forças
nacionalistas e progressistas.
Após o texto de 1958, a agremiação
adotou uma linha de participação no movimento nacionalista, assumiu a luta
democrática como bandeira e possibilitou a ela tocar as questões concretas do dia
a dia. Houve uma busca pela concretização de alianças, sem exigências irreais,
dogmáticas e apriorísticas de hegemonia, como acontecia no período anterior.
No entanto, a Declaração de Março
tem como questão principal um grave erro estratégico, fruto de uma análise
precária da composição de classes da sociedade brasileira. O texto atribui à
“burguesia nacional” um papel progressista. A dada altura, a Declaração diz o
seguinte:
O proletariado e a burguesia se
aliam em torno do objetivo comum de lutar por um desenvolvimento independente e
progressista contra o imperialismo norte-americano.
O resultado concreto foi que o Partido acabou por se colocar a reboque da
“burguesia nacional” e de sua concepção política e econômica central, o
nacional-desenvolvimentismo. A maior parte dessa burguesia aliou-se ao
imperialismo no golpe de 1964, isolou e combateu os
comunistas e a esquerda em geral.
O período nacional-desenvolvimentista
não foi uniforme e suas características intrínsecas conheceram várias nuances.
Obteve-se, através dessas orientações, um modelo de modernização acelerado, que
não tocava nas estruturas arcaicas de concentração da renda e da propriedade.
Provocou um dos maiores deslocamentos
humanos da história contemporânea, através das migrações internas do campo para
a cidade, com vantagens e problemas daí advindos.
O desenvolvimentismo dos anos 1950 entrou em crise, no final daquela década,
por conta da maciça e crescente necessidade de importação de bens de produção,
o que passou a causar desequilíbrios estruturais no balanço de pagamentos.
Some-se a isso, uma contradição inerente ao desenvolvimento, a formação de uma
numerosa e disciplinada classe operária, que passou a reivindicar uma
repartição maior das riquezas por ela produzida, colocando-se na prática contra
um dos pilares do modelo, a super-exploração do trabalho.
As raízes do golpe de 1964 estavam
principalmente em impedir que as classes sociais emergentes na cena política a
partir de 1930 – especialmente o operariado, os trabalhadores rurais e setores
das camadas médias – exigissem democratização da propriedade, da renda e
do poder político. Para seguir atraindo o capital externo, o país teria de
domesticar as reivindicações trabalhistas e criar um ambiente politicamente
estável.
O golpe de 1964 é a maior expressão
histórica do equívoco de se submeter o movimento popular a uma diretriz própria
da burguesia. O exame criterioso desse exemplo deve nortear as ações táticas e estratégicas
da esquerda brasileira.
As vertentes da retomada Após duas
décadas de defensiva das camadas populares, a sociedade brasileira viveu novamente,
a partir dos anos 1980, um intenso período de disputas, no bojo das lutas políticas
pelo fim da ditadura. O debate tinha como pano de fundo a ofensiva do movimento
popular.
A percepção de que o modelo anterior
entrara em crise, gerando um acentuado desgaste político do regime suscitou um
grande debate nacional. Ele combinava reivindicações democráticas com
definições de rumos na economia. Havia três vertentes e várias nuances no
tabuleiro.
A primeira delas, liderada pelo grande capital, clamava por uma política de
desestatização, identificando o propalado gigantismo do Estado como matriz da
dinâmica recessiva e inflacionária que o país viveu a partir de 1982. A saída
seria uma redução do papel do Estado, para liberar energias produtivas da
iniciativa privada.
A segunda era vocalizada por
setores da burguesia – cuja tradução política se dava através da maioria do
PMDB – e por uma parte do movimento social, especialmente pelos setores nos
quais o PCB tinha forte presença. Exigiam uma redefinição do papel do Estado,
que deveria retomar suas características de planejador e impulsionador do
desenvolvimento.
E a terceira vertente – formada pelas
lideranças do chamado “novo sindicalismo”, por egressos da luta armada dos anos
1960-70 e por facções progressistas da Igreja Católica – advogava, de maneira rudimentar,
uma ruptura com o capitalismo, sem mediações com a
burguesia brasileira. Eram os setores que convergiriam para a formação do
Partido dos Trabalhadores. A agremiação nasceu e cresceu criticando a política
de alianças de classe do PCB.
Ao longo dos anos, a segunda e a terceira
vertente tiveram grande convergência. Ou seja, o PT paulatinamente passou a
adotar a aliança de classes que renegara no passado. E ao conquistar o poder de
Estado, aconteceu o que o economista Paul Singer notou em entrevista recente: A
“aliança com sistema financeiro e latifúndio deu ao PT tranqüilidade para
governar”.
Concretizou-se assim o pacto de
desenvolvimento mencionado no início. Uma conformação política dessa natureza
não é feita para se lutar pelo socialismo e muito menos para mudar
estruturalmente a sociedade. É neste cenário que o grande capital, o
agronegócio exportador e as velhas oligarquias seguem dominando, em aliança com
parcelas expressivas do movimento popular. Colocar na agenda É também neste
cenário que a esquerda socialista precisa alcançar legitimidade para colocar na
agenda política a alternativa de uma transformação social radical. Dois erros
devem ser evitados:
A) Ficar a reboque do
desenvolvimentismo. Os setores que o compõem são aliados em uma luta comum até determinado
ponto: romper com alguns constrangimentos impostos pelo capital financeiro, o
que não é pouca coisa;
B) O segundo equívoco é o oposto.
Seria incorrer num doutrinarismo estéril, sem disputar a base social do pacto
dominante, que envolve setores com várias contradições entre si. Seria ao mesmo
tempo incorreto eleger o desenvolvimentismo como obstáculo principal da luta
pelo socialismo No plano concreto, um programa tático poderia envolver, entre
outros, os seguintes pontos:
A) Uma política monetária e uma política
fiscal expansiva, que se traduza na quebra da dominação neoliberal. Concretamente
isso se traduz em juros baixos, fim do superávit primário e na adoção de controle
de capitais;
B) No âmbito do trabalho, redução
de jornada, aumento de direitos e do trabalho formal;
C)
Maior controle do sistema financeiro e reestatização das empresas privatizadas
nos últimos 20 anos;
D) Aumento do investimento estatal
nos serviços públicos
E) Auditoria da dívida pública;
F). Democratização das comunicações;
G) Reforma agrária;
H). Direitos iguais para homens, mulheres, negros e minorias;
I). Uma política de desenvolvimento ecologicamente sustentável.
A partir desses pontos – que contam com a concordância de
amplas parcelas do campo popular, algumas hegemonizadas pelo pacto dominante –
é que se pode avançar no plano concreto para a construção de uma estratégia
socialista com força social.

A luta pelo socialismo é um projeto coletivo e não-linear.
Depende das injunções históricas, do ambiente interno ao país, das condições da
economia mundial e de decisões na esfera política. Ela necessita da constituição
de uma frente popular e democrática, a partir das organizações existentes na
sociedade. Pressupõe a disputa das bases sociais do pacto dominante.
A luta pelo socialismo não interessa ao grande capital e nem àqueles que têm no
terreno financeiro e na especulação a fonte principal de seus ganhos. Um
projeto desse tipo, que passa por uma ruptura revolucionária, pressupõe a
supremacia da política, com sociedade organizada, instituições democráticas e
Estado e forte. E pela solidificação dos partidos de esquerda.
É algo a favor das maiorias e
contra as minorias privilegiadas. Um projeto desse tipo só é possível em um
embate anti-imperial de envergadura e de integração regional soberana.
(*)
Agradeço a sugestões feitas em versões anteriores deste texto por Antonio
Augusto, Duarte Pereira, Paulo Kliass e Valter Pomar. Naturalmente, eles não
têm responsabilidade alguma sobre as linhas que seguem.
NOTAS
1. Prado Jr., Caio, A revolução brasileira, Editora Brasiliense, São
Paulo, 1987, pág. 11
2. Claudín, Fernando. A crise do movimento comunista: vol. 1. São
Paulo, Global, 1985. v.1. págs. 51-52
3. Furtado, Celso, Os desafios da nova geração, in Revista de Economia
Política, Vol 24, nº 4 (96), Out-Dez – 2004, pág. 484